Adonis, por Nuno Júdice

Adonis (Ali Ahmad Said). 1930. Nació en  Siria, se nacionalizó libanes. Estudió Filosofía. Adopta el seudónimo de Adonis para facilitar la publicación de sus versos. Es considerado como uno de los poetas árabes más importantes en la actualidad, y ha sido un crítico y una voz de alerta, en el mundo político y cultural árabe.

A MÃO DA NUVEM

 

Ao voltar de viagem, acordei ontem, perturbado.

Sonhava –

no meu sonho vi que a luz subia como uma

planta cujo nome ignoro mas que se assemelha ao girassol.

Passaram pelo sonho

numerosas cidades, sem casa,

numerosas casas, sem quarto,

numerosos quartos, sem cama,

numerosas camas sem sono.

 

2

Como é voluptuoso ver no ar

desfazerem-se os botões de uma rosa

à luz da madrugada,

quando ela ainda mal desperta!

 

3

Através das frestas na porta e nas janelas do meu quarto

vem o ritmo dos passos, nem os do dia, nem os da noite.

São os passos de uma mulher eternamente vagabunda

que nunca envelhece, não repousa, não dorme.

O seu nome é o vento.

 

4

Não consegui ainda

convencer o tempo

a associar-se a mim para lançar o seu dado verde.

 

5

Aqui, onde agora habito,

o vazio não pára de se queixar.

Não arranja nada para fazer

e não tem casa.

 


6

Sei que o meu tom, por vezes,

é um tom de celebração,

mas é uma celebração votada ao vento.

Isto porque o que ele nos envia

é só as missivas da dúvida

e os mensageiros da certeza.

 

7

Ouço em viagem vozes estranhas.

Só as pode guardar um museu destinado

à infância da palavra.

 

8

A viagem ensinou-me

a ler o tempo

traçado pela mão da nuvem.

 

9

Onde encontrar o elixir

que ande sempre ao meu lado,

que venha sempre de uma outra época?

 

10

Ontem, a noite veio a pé para me visitar,

como se se recusasse a apanhar o mesmo comboio

que as estrelas.

 

11

Amadurece-me, ó sol.

Colhe-me, ó noite.

 

12

Nenhuma protecção para a viagem pelo frio deste mundo

além da linguagem,

mas a linguagem é um pano cheio de buracos.

 

13

As margens aceitaram

ser uma casa para as ondas,

porque as próprias ondas são

um cais de partida para as margens.

 

14

Irá o viajante que há em ti encontrar enfim

aquele que em ti reside?

Ficará então a viagem a ser

uma onda de palavras

vindo quebrar-se nas tuas entranhas

contra o rochedo do sentido?

 

15

O mundo não deixa de ser uma criança.

Levanta-te e deita-o no seu leito,

ó amanhã.


 

MÚSICA I

 

5

Era o verão. Disseste:

«Borboleta» quando paraste, e te voltaste para mim

caminhámos

e a rua tinha um rasto de janelas.

 

A morada sai da sua argila

erra pelas pradarias. Encontrámos

o que designava os seus segredos. Murmurámos:

«esta é a língua revelada que faz com que Nefertite

caia da sua eternidade» e dissemos:

«que há de mais amado Sherazade do que a língua crepuscular do nosso verão?»

 

(Sherazade

apenas canta as feridas que lhe oprimem o peito,

e assim se distrai com os dados dos seus prazeres.)

 

Era verão, quando nos separámos.

 

13

A terra abriu o seu vestido e andou

liberta nos nossos passos

ó terra, dissemos quando ela nos interrogou:

conhecemos o amor. Amassámos o seu barro

com o vento das nossas poeiras

amassámos os nossos sofrimentos com as belezas de uma lua errante

e desenhámos

em nós o que é visível nos seus traços.

 

Tal é a nossa terra –

prevemos que o amor se apaixonará pelos seus nomes

tal como os registaram

as suas efemérides.

 

26

 

Abro a porta ao vento

e ele visita os desenhos pendurados

aflora os seus contornos

depois boceja e parte de costas curvadas.

 

O nosso amor não estava ali, os seus espectros

levaram tudo o que tinham desenhado sobre

a cama, as almofadas, o fecho da porta

no seu cadeado antes de desaparecer.

 

Imaginação minha apenas? No entanto

uma nuvem veio confirmar tudo

a nuvem que acabou de passar.

 

Nenhum vento de passagem ninguém para dizer a estes desenhos

como contar as lendas

como escrever a história destas nuvens.

 


38

 

Disse ao amor:

estou pronto a fazer o que quiseres;

chamar ao meu presente futuro

que renega o tempo da memória.

 

Levantei-me com a alvorada. Andámos e perguntámos:

como será o dia?

Penetrei na camada da terra. Ouvi

e contemplei do seu interior:

o rosto da natureza

o rosto da cidade

a luz

o sol

a noite

os cumes as pradarias as sementes as colheitas

as fontes e as ervas

as palavras que se enfeitam

tudo isto

sai da matriz da memória.

 

 

 Traducción: Nuno Júdice